domingo, 12 de junho de 2016

Algumas linhas sobre o livro “O Moinho do Xico”, de Vera Silva



Este é um pequeno livro lançado em maio de 2016, da autoria da neta de um moleiro e que retrata um moinho – o moinho do seu avô. Não é um tratado sobre molinologia nem tão pouco a análise e o enquadramento deste moinho dentro da área disciplinar na molinologia. Se o tivéssemos de definir duas palavras, essas seriam “memória” e “identidade”.

Com efeito, este livro é um relato do que é o Moinho do Xico, não de um estranho qualquer, mas de quem o vê de dentro, não só como estrutura económica, que garante (ou garantiu) o sustento da casa, mas que mais que isso (ou talvez precisamente por isso), como algo que cria laços afetivo-identitários com o mesmo. Ninguém conseguiria escrever este livro desta forma sem ser a própria autora, porque o “eu” da Vera Silva atravessa toda a obra. Este livro é a preservação da sua memória e da identidade da família que vive em torno daquele engenho.


Ainda que nunca venha a ser assumido como tal, esta obra é um pequeno “tijolo” na construção do projeto da candidatura dos Moinhos de Vento do Oeste a Património Imaterial da Humanidade. Uma candidatura deste género deverá primar pelo que têm de diferente estes moinhos dos demais, pelo que está além dos moinhos. Esta obra assume-se como a passagem à escrita do que diferencia o Moinho do Xico de todos os outros moinhos. O alicerce identitário que o mesmo cria para a família que esteve, economicamente falando, dependente dele. E é este o ponto de partida: se os seus não o souberem valorizar, ninguém o saberá fazer. 

Fotografia da página do facebook do Moinho do Boneco. 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

"Património" - Crónica n' O Almeirinense


“Património” significa “herança que vem dos pais”, não no sentido de progenitores, mas sim de antepassados. Curioso se torna o facto de perceber que em inglês o termo utilizado é heritage, que quer dizer simultaneamente “património” e “herança”. Dentro deste âmbito, a utilização do termo “património cultural” é uma redundância, tendo em conta que todo o património encerra uma dimensão cultural, que é a nossa herança.

Almeirim tem em si uma capacidade patrimonial notável, do ponto de vista histórico, ou não fosse este um dos locais prediletos da presença da corte no séc. XVI. Existiu um Paço Real em Almeirim, o Paço Real da Ribeira de Muge e o Convento de Nossa Senhora da Serra, da Ordem de S. Domingos. De todos estes, apenas chegaram aos nossos dias vestígios muito mal tratados do Paço Real da Ribeira de Muge (em Paço dos Negros) e o pórtico do Convento da Serra. Além destes “monumentos maiores”, existem outros edifícios de interesse, como as diversas igrejas e capelas, solares das quintas agrícolas, edifícios civis (Cineteatro, Mercado Municipal – em Almeirim e Benfica, edifício dos Paços do Concelho, entre outros).

O concelho parte com um forte atraso na sua política de valorização patrimonial. De muito poderíamos falar, mas vamos centrar-nos nas classificações de bens. Pela primeira vez em outubro de 2014 foi proposta a classificação de um bem como Imóvel de Interesse Municipal (a Capela do Calvário) e essa classificação andou para a frente.

Já em 1999 foi proposta a classificação como Imóvel de Interesse Público ao então IPPAR do Paço Real da Ribeira de Muge (último vestígio da presença da corte em Almeirim e que por acaso até é pertença da autarquia – ao contrário da Capela do Calvário). Quando em 2005 este instituto público se pronúncia, dizendo que o mesmo não cumpre os requisitos para a dita classificação, remete à autarquia o processo para que fosse desenvolvida a classificação de interesse municipal. Ao longo destes últimos onze anos foram várias as vezes que o assunto foi trazido à discussão em reuniões de câmara, assembleia municipal ou espaço público pela oposição política ou cidadãos indignados, seja pela sua classificação ou em denúncia dos vários atentados à sua conservação. Apesar de algures ter sido aprovada uma deliberação sobre a classificação do Paço Real da Ribeira de Muge como Imóvel de Interesse Concelhio, o procedimento em nada avançou. O processo continua como estava em 2005: parado. Não que seja uma classificação que irá recuperar o espaço, dinamiza-lo e dar-lhe vida. Mas uma classificação obriga (quanto mais não seja moralmente) a que sejam tomadas providências de conservação. Promove o estudo do local. Desperta a atenção para poderem ser feitos estudos mais aprofundados. Justifica ainda mais a sua inclusão em roteiros turísticos.

A degradação ou desaparecimento do nosso património constitui um empobrecimento cultural e uma manifestação de fraco sentido cívico.

domingo, 22 de maio de 2016

Intervenção da Academia Itinerarium XIV na Mesa de Abertura do Colóquio "Sobre a Realidade dos Moinhos de Vento Portugueses"

Mesa de Abertura do Colóquio "Sobre a Realidade dos Moinhos de Vento Portugues"
Da esquerda para a direita: Cristina Casimiro (Presidente da Junta de Freguesia da Raposa), Samuel Tomé (Secretariado da Academia Itinerarium XIV) e Eurico Henriques (Vereador da Cultura da Câmara Muncipal de Almeirim)
Fotografia de Helena Fernandes

Todos os países terão as suas características próprias no que diz respeito à atividade dos moinhos, e Portugal não será exceção. Somos um país que, onde a nível de tipologias de engenhos, é possível encontrar um pouco de tudo, mais ou menos adaptado às nossas características morfológicas e climáticas. Assim, temos uma riqueza de atividade molinológica (sendo que a molinologia é o estudo e o conhecimento dos moinhos) muito grande, não só com eventos como este, mas também com muitas obras de referência, como a “Tecnologia Tradicional Portuguesa – Sistemas de Moagem”, de Ernesto Veiga de Oliveira, Benjamim Pereira e Fernando Galhano, citada em praticamente todas as obras sobre o tema em Portugal, mas também comummente mencionada na literatura internacional sobre o tema.

Este colóquio pretende acrescentar um pouco mais a todos nós, sobre esta realidade que são os moinhos de vento em Portugal. Com apenas tão poucas comunicações conseguimos reunir diferentes tipologias de moinhos vento, de diferentes áreas geográficas, abordadas por diferentes áreas disciplinares. Em nome da Academia Itinerarium XIV da Ribeira de Muge saúdo os oradores aqui presentes, que aceitaram prontamente este desafio.

Em nome da Academia Itinerarium XIV saúdo também muito especialmente a Junta de Freguesia da Raposa, na pessoa da Senhora Presidente, que desde o primeiro momento se associou a este evento, e mais que um apoio, sentimos um verdadeiro empenho desta autarquia na organização deste colóquio.

Não concebemos este colóquio noutro lugar que não aqui. Com efeito, esta Casa da Cultura, por muitos conhecida como “o Descasque”, por aqui ter funcionado uma unidade de descasque de arroz, foi ainda conhecida por muitos antes disso como um moinho. Já mencionado no séc. XVIII, este Moinho da Raposa, que era tocado a água, ou não tivéssemos nós aqui mesmo ao lado a Ribeira de Muge, recebe hoje um colóquio sobre moinhos de vento.

Este foi um dos objetivos a que nos propusemos. Trazer aqui uma realidade diferente daquela que tínhamos por mais comum. E hoje cá estamos para a apresentar.

Termino com votos que todos os presentes apreciam e aprendam algo mais. Que hoje, quando sairmos daqui, façamos o exercício do que ficamos a saber que não sabíamos antes de termos entrado por aquela porta.

Samuel Rodrigues Tomé
Secretariado da Academia Itinerarium XIV da Ribeira de Muge

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

O Moinho de Vento de Paço dos Negros na IM-91


A revista "International Molinology" é uma publicação semestral da TIMS (The International Molinological Society). O último número, que chegou aos membros nesta semana, é a edição especial do 50.º Aniversário da TIMS, com o dobro do tamanho habitual. A revista é dividida em várias secções temáticas (artigos científicos originais, sugestões de leitura relacionadas com molinologia, pequenas notícias, entre outros). 

Foi publicada nesta edição um pequeno artigo (no capítulo "communications") com o nome "Paço dos Negros Windmill, Almeirim, Portugal", da nossa autoria, em que foi relatada a descoberta não só da tipologia como da imagem do desaparecido Moinho de Vento, que existiu em Paço dos Negros. Este, entre outras singularidades, nunca precisou de outra designação que não aquela, por ser o único da sua tipologia na zona. 

Uma construção efémera (laborou cerca de 30 anos), que foi imortalizada na mente da comunidade com uma placa toponímica, mas cuja imagem era completamente desconhecida. Trazê-la ao presente, no Dia dos Moinhos Abertos de 2015, foi sem sombra de dúvida um dos melhores momentos da vivência cultural da Academia Itinerarium XIV da Ribeira de Muge. Nada nos deixa mais feliz que ter acontecido precisamente no ano em que a TIMS comemora cinquenta anos de existência! O último paragrafo do artigo sintetiza precisamente este  indescritível sentimento: 

"This discovery was, without a shadow of a doubt, the best gift that a group of citizens with love to their homeland and dedicated to its history and culture could have received. Nothing makes us more proud than that this discovery was made on TIMS's 50 years commemoration."

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Nossa Senhora do Rosário nos assentos paroquiais de Santo António da Raposa na primeira metade do séc. XVIII

Na Paróquia de Santo António da Raposa, cujo primeiro livro de assentos paroquiais media o período de 1706-1741, aparece como madrinha de batismo quatro vezes Nossa Senhora do Rosário (num total de 289 batismos registados). Contudo, antes de tentarmos perceber esta devoção das gentes que aqui viviam, há que tentar perceber melhor o culto mariano no geral e a Nossa Senhora do Rosário em particular naquela época.


Nossa Senhora do Rosário – Imagem na Igreja de S. Domingos, Lisboa
Devemos ter presente que o Convento da Serra, que existiu na Paróquia de Santo António da Raposa, era habitado por frades dominicanos (ver aqui)

Tendo como ponto de partida um artigo de Carlos Alberto Ferreira Almeida, intitulado “O Culto a Nossa Senhora, no Porto, na época moderna”, podemos melhor perceber a devoção mariana neste hiato temporal. Com efeito, o culto da Mãe de Cristo acentuou-se a partir do final da Idade Média, deixando a designação de “Santa Maria” para “Nossa Senhora”, assumindo nesta última forma as mais variadas causas, conforme as invocações, substituindo os santos patronos dessa mesma causa (ex: Nossa Senhora do Leite substitui S. Mamede para a amamentação, Nossa Senhora da Saúde substitui S. Roque e S. Sebastião para a peste, Nossa Senhora da Ajuda substitui S. Pedro para as comunidades piscatórias, Nossa Senhora da Vitória substitui S. Jorge para as causas militares). Contudo, num pequeno espaço podia existir mais que um culto a Nossa Senhora, com invocações diferentes. Por exemplo, na Paróquia de Campanhã, segundo as Informações Paroquiais de 1758, existiam seis capelas dedicadas a Nossa Senhora, sob a invocação de Nossa Senhora da Graça, da Vida, do Rosário, da Conceição, do Pilar e dos Anjos.

O culto a Nossa Senhora do Rosário, do Carmo, da Silva e da Boa-Morte vêm substituir o patronato de S. Miguel na defesa-guarda dos túmulos e almas. Crê-se que Nossa Senhora assiste aos julgamentos dos seus devotos, intercedendo pelos mesmos, colocando a sua touca ou rosários no prato da balança dos méritos. É durante a época moderna que se origina o hábito dos mortos levarem um rosário para a sepultura e que este passe a ser recitado nos velórios. Não devemos esquecer que, além do apadrinhamento de Nossa Senhora do Rosário patente nos registos paroquiais de Santo António da Raposa, foi ainda encontrada no espaço do paço, segundo Evangelista (2015) uma medalha de Nossa Senhora da Boa Morte, com a data de 1732 gravada, o que atesta a devoção neste local a Nossa Senhora sob a causa da morte e julgamento no além.

Medalha de Nossa Senhora da Boa Morte, encontrada no Paço Real da Ribeira de Muge.
Foto de Manuel Evangelista.

Segundo Almeida (1979), torna-se prática ao longo dos séculos XVII e XVIII, na configuração das igrejas, serem dados os dois altares laterais ao altar-mor (os com mais destaque na igreja) a Cristo Cruxificado (por norma à direita) e a Nossa Senhora, sendo mais comum nas invocações de Nossa Senhora Dolorosa e Nossa Senhora do Rosário. Na Igreja Paroquial de Santo António da Raposa, e apesar da sua diminuta dimensão, podemos constatar que apesar de não existirem altares laterais, há duas bases para santos que ladeiam o altar principal. Enquanto que Cristo Cruxificado está, neste caso, no altar principal, com o sacrário. No lado encontramos Santo António (Padroeiro da igreja e da Paróquia) e no lado esquerdo Nossa Senhora de Fátima. Teria aqui estado, antes dos fenómenos da Cova da Iria, Nossa Senhora do Rosário?


Altar Principal da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa.
Vê-se, a ladear o mesmo, as imagens de Nossa Senhora de Fátima e de Santo António.

Como já referimos, os batismos apadrinhados por Nossa Senhora do Rosário são no total quatro. O primeiro data de 11 de março de 1728, de um menino chamado Manuel, filho de Lúcia Maria (moça solteira), moradora no Casal do Moinho de Vale Flores (já na Paróquia do Espírito Santo de Vale Cavalos).

A 19 de novembro de 1732 volta a ser invocada Nossa Senhora do Rosário para apadrinhar José, o segundo e último filho de Francisco Oliveira e Domingas Dias, moradores em Pero Pez. Esta criança morrerá menos de um ano depois a 30 de setembro de 1733. Em 2 de fevereiro de 1733, Nossa Senhora do Rosário é madrinha de batismo de Anastácio, também segundo filho (em seis) de José Gonçalves e Josefa Maria, moradores no Passo dos Negros. Para além de serem estas duas crianças segundos filhos (ou pelo menos os segundos de que há assento paroquial), foi ainda mencionado no seu registo que o apadrinhamento de Nossa Senhora do Rosário de deve à devoção dos pais.

O quarto e último assento, datado de 5 de fevereiro de 1737, menciona que Nossa Senhora do Rosário apadrinha o batismo de João, terceiro filho (de quatro) de Inácio Santiago e Josefa Maria, moradores nos Paços dos Negros. Esta criança irá morrer a 8 de agosto do mesmo ano, cinco meses após o batismo.

Deixando de parte agora o caminho dos factos, poderemos entrar em algumas conjeturas e levantar interrogações pertinentes, a nosso ver, para o culto de Nossa Senhora do Rosário pelas gentes da Ribeira de Muge. Assim:

- Apesar da devoção, seria este apadrinhamento “santo” um meio de procurar o auxílio divino para a criança? Com efeito duas das crianças morrem pouco tempo depois do batismo. Estariam já aquando do batismo doentes e prever-se uma morte no médio prazo? Seriam os conhecimentos médicos suficientes já para prolongar por meses a vida de um recém-nascido? Apesar não existir registos de óbitos dos outros dois, podemos considerar que poderiam melhor da maleita e escapar, ou o seu sepultamento ter sido noutra paróquia.

- Por outro lado, a invocação de Nossa Senhora do Rosário como madrinha de batismo pode ser o meio de obter graças divinas para a criança que está a ser limpa do pecado original, quando a sua condição de nascimento não é a mais favorável? Com efeito, a primeira criança foi concebida fora do casamento, enquanto que as restantes três não são primogénitos (tanto o filho de Francisco Oliveira como o de José Gonçalves tinham uma irmã mais velha, o de Inácio Santiago tinha uma irmã e um irmão).

- Porquê Nossa Senhora do Rosário? Além dos motivos aludidos anteriormente, da sua grande devoção nesta época, como também já foi mencionado atrás, existia um convento na paróquia, o Convento Dominicano de Nossa Senhora da Serra. Encontramos em Lisboa, precisamente na Igreja de S. Domingos (integrante do antigo convento dominicano da capital) uma imagem da Virgem do Rosário. Sabemos que na Igreja de Santo António da Raposa existiu uma imagem de Nossa Senhora do Rosário (roubada aquando de um assalto em fevereiro de 2002). Terá ela vindo no Convento da Serra? Terão os frades influenciado este culto nas populações?

Imagem de Nossa Senhora do Rosário na Igreja de Santo António da Raposa
Fotografia recolhida por Manuel Evangelista

- Por fim, Almeida (1979), afirma que na Igreja da Foz do Douro (Porto), havia dois altares à Virgem do Rosário, cada um com a sua própria confraria. A celebração de uma festividade era a 15 de agosto, e a segunda no primeiro domingo de outubro. Esta última, segundo as Informações Paroquiais, era a festividade “dos pretos”. Seria este um culto do povo negro, que bem sabemos ter aqui uma forte presença.
  
Bibliografia e outras fontes:
(1706-1741). Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados – Raposa (Sto. António).
ALMEIDA, Calos Alberto Ferreira (1979). “O Culto a Nossa Senhora, no Porto, na época moderna”, Revista de História, vol. 2. Porto: Centro de História da Universidade do Porto.

EVANGELISTA, Manuel (2015). A Capela de S. João Baptista. S/l: ed. de autor. 

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Comunicação "Património Molinológico na Ribeira de Muge"

Foto de Manuel Evangelista

Resumo
Se entendermos por moagem o ato da transformação de grãos em matéria comestível, podemos afirmar que esta é uma das atividades que acompanha o ser humano desde as comunidades recolectoras, quando o Homem trincava grãos, sendo esta a mais primitiva forma de trituração. A partir daqui, e ao longo da evolução humana, o homem foi aperfeiçoando as técnicas de transformação do cereal, não só com a força humana e de animais, mas também com o aproveitamento da força da água e do vento.

No vale constituído pela Ribeira de Muge, onde os vestígios da presença humana são anteriores ao período da formação da nacionalidade, encontramos, de braço dado com a presença de vários povos, indícios de atividade moageira. 

Tendo nós estabelecido como limite para estudo a atividade molinológica ao longo desta ribeira entre as suas confluências com a Ribeira do Chouto (a montante) e a Ribeira da Lamarosa (a jusante), encontramos aqui, nos nossos dias, onze engenhos, nos mais variados estados de conservação (ou de ruína). Para além destes, temos ainda registos e memórias de outros tantos moinhos, já desaparecidos no que a vestígios diz respeito, mas que ainda permanecem nas memórias de alguns e na documentação do séc. XIV a esta parte.

Contudo, o grande desafio para quem investiga e estuda molinologia é conseguir adaptar os estudos genéricos à realidade a que se dedica. Porque, efetivamente, sendo os moinhos de rodízio (predominantes na Ribeira de Muge) os mais disseminados por Portugal, serão substancialmente diferentes neste local e em Trás-os-Montes, não só pela presença de materiais diferentes, para construção, como também por uma realidade económica distinta, que exige uma resposta diferente, aquando da construção e manutenção do engenho.

É precisamente esta realidade distinta que queremos vincar: aquilo que distingue os moinhos da Ribeira de Muge de todos os outros moinhos.

Decidimos estruturar a presente comunicação em três partes distintas. Na primeira contextualizamos os moinhos como elemento do processo de moagem, assim como as diversas tipologias que existem destes. Numa segunda fase, abordamos a evolução histórica dos engenhos nas margens da Ribeira de Muge. Por fim, fazemos uma descrição deste património do ponto de vista técnico e socioeconómico.


1. Sistemas tradicionais de moagem
Para partirmos para o estudo deste tema, há três perguntas que, a nosso ver, têm de ser respondidas:

A. O que é a moagem? A moagem é o processo de trituração de determinado bem. Numa aceção mais alimentar, a moagem é processo de transformação de um grão numa substância comestível (que não tem necessariamente de ser farinha).

B. Desde quando é que existe moagem? A moagem é uma atividade que acompanha desde sempre o homem. Podemos afirmar que a sua mais primitiva forma foi o trincar entre os dentes de sementes.

C. O que é um moinho e que tipos de moinhos existem? O moinho é a soma de três elementos: um aparelho motor (que pode ser acionado pela força da água, do vento ou pela força humana), a moega (casal de mós e demais elementos que efetuam a moagem) e o edifício que alberga o aparelho.


1.1. Primeiras técnicas de moagem
 
Imagem 1: Técnica do “bater” – Almofariz de pedra – Ilha da Madeira. Fotografia em “Sistemas Tradicionais de moagem”.
Imagem 2: Técnica do “esfregar” – Moinho de Rebolo (Museu dos Moinhos Vitorino Nemésio)

Os dois utensílios acima foram os primeiros utilizados para moer. O primeiro consistia em colocar o grão numa superfície, desferindo movimentos horizontais sobre este, por forma a obter um granulado. É a chamada “técnica do bater”, a partir da qual se evoluiu para o almofariz. A segunda técnica, chamada “técnica do esfregar”, obtinha-se por via do instrumento da segunda imagem, um moinho de rebolo, em que o cereal era depositado na calha e deslizava-se uma pedra sobre este. Tanto numa técnica como noutra não se obtinha farinha, mas sim um granulado, que era utilizado na alimentação, sob forma de papas.

1.2. Engenhos Tradicionais de Moagem


Imagem 3: Sistematização de tipologias de moinhos. Elaboração própria.

No que às tipologias de moinho existe, podemos agrupá-las, como mencionado anteriormente, em três grandes categorias, consoante a força motriz: Moinhos a Sangue (acionados pela força do homem ou de animais), moinhos hídricos (acionados pela força do vento) ou moinhos hidráulicos (acionados pela força da água). Dentro de cada uma destas categorias, existem sub-categorias, a saber:

A. Moinhos a Sangue:
a) Mós Manuais: são simples mós redondas, com um olho (buraco redondo, onde cai o cereal para ser moído), de acionamento direto.

b) Moinholas: também podem ser chamadas de zangarelhas, e o aparelho já é mais complexo que o das mós manuais. A grande evolução em relação a estas é a existência de um dispositivo que permite o acionamento indireto, através de uma manivela, chamado urreiro.

c) Atafonas: com a atafona o processo da moagem deixa de ser uma atividade doméstica e começa a revestir características mais industriais. A atafona é acionada por um animal, que gira em torno da moega (quando é de acionamento direto), ou à parte desta (quando a atafona é de acionamento indireto). O ofício de atafoneiro era distinto do de moleiro.

B. Moinhos de Vento
a) Moinhos de Vento de Torre Fixa: São estruturas cilíndricas, normalmente de alvenaria (apesar de existirem alguns exemplares de madeira). Dentro destas podemos criar duas sub-tipologias: os moinhos de vento saloios e os moinhos de vento serranos. Os primeiros predominam sobretudo a sul de Coimbra, e caracterizam-se por serem rebocados, caiados de branco e com uma barra de cor viva. A rotação do capelo (telhado), para apanhar o vento dominante, é feita por um dispositivo interior chamado sarilho, que consiste numa manivela à qual é ligada uma corrente que vai sendo presa no arganel. Quanto ao moinho serrano, as suas paredes são de silharia, e a rotação do capelo é feita por um dispositivo exterior – o rabo – que liga o capelo ao chão, e que é empurrado pelo moleiro na direção do vento dominante.

b) Moinhos de Vento Giratórios: são pequenos engenhos, feitos de madeira e com rodas, em que todo o edifício gira para apanhar o vento dominante. Tem um espigão fixo, que se torna o eixo sob o qual roda todo o engenho. As rodas estão assentes sobre uma circunferência de pedra, que atua como se fosse um carril, chamada carreira. A sua grande vantagem é que são de fácil desmonte e deslocação para outros locais.

c) Moinho de Vento de Armação: Estrutura metálica, de estilo americano, em que em vez de velas, o moinho tem uma roda de palhetas, que apanha o vento com superior eficácia em relação aos demais.

C) Moinhos Hidráulicos
a) Moinhos de roda horizontal: são moinhos em que existe uma roda, disposta na horizontal, na parte de baixo do moinho (os infernos), e em que a cada roda corresponde um casal de mós. Estas rodas podem ser rodízios ou rodetes. O rodete funciona dentro de um poço, feito à medida, e sob o sistema de turbina, ou seja, funciona submerso. Já o rodízio, se houver uma cheia e ficar submerso, deixa de trabalhar.

b) Moinhos de roda vertical: também chamados por azenhas, têm uma grande roda exterior, colocada na lateral do engenho, sob a qual cai água. Uma única roda de azenha pode tocar vários casais de mós, através de um veio principal, que pode ter várias entrosgas. Contudo, necessita de um caudal superior aos moinhos de roda horizontal.

c) Moinhos de Maré: são engenhos, normalmente de rodízio, que utilizam a diferença entre a maré alta e a maré baixa para trabalhar. Têm uma grande caldeira, que vai enchendo à medida que a maré vai subindo, e que é fechada quando esta atinge o ponto mais alto. Assim que os rodízios emergem, libertam a água sobre estes, acionando assim o moinho. É de todos os moinhos o mais dispendioso, daí ter normalmente sempre um elevado número de mós.


1.3. Desafios em estudar este tema
Estudar a atividade moageira tem algumas características próprias com as quais é preciso aprender a lidar. Em primeiro lugar, do ponto de vista histórico, é preciso ter presente que os moinhos alteram constantemente de nome. Com efeito, ora vêm agregados ao nome dos seus moleiros ou proprietários, ora à herdade/ quinta a que pertencem, ou ainda são mencionados com preciosismos geográficos. Por exemplo, um dos moinhos dentro do nosso objeto de estudo é referido, desde o século XIV, como Moinho da Regueifeira, do Gonçalo, de Vasco Velho, do Policarpo, do Clérigo, das Donas e de Cima.

Por outro lado, há que ter igualmente presente o contexto regional em que o mesmo se insere. Com efeito, e no que ao caso português concerne, há uma diferença substancial entre o sul e o norte do país. Se a norte o moinho é um edifício pequeno, utilizado sobretudo para a economia familiar, tendo normalmente apenas um casal de mós, a sul são comuns moinhos com quatro ou cinco casais de mós, destinados essencialmente à comercialização. Para além disto, há uma diferença, de local para local, nos utensílios dos moinhos (devido às matérias-primas existentes), além da designação dos próprios nomes dos elementos que constituem o engenho. A título de exemplo deste último, um pouso pode também assumir o nome de mó de baixo, pedra jazente, cepo, poiso, dormente, mó de pé ou assento.

O que abordamos aqui é o que podemos considerar, para o caso português, padrão. Contudo, existem realidades dispares de local para loca, tanto no nosso próprio país, como no estrangeiro. As imagens abaixo transportam algumas dessas mesmas diferenças, e ainda que com configurações diferentes, nos casos mediterrânicos, os moinhos do centro da europa são totalmente diferentes daqueles que temos no nosso país.



Imagem 4: Moinhos de Vento na Ilha de Porto Santo (Madeira). Imagem da Internet.


Imagem 5: Moinhos de Vento na Ilha do Faial (Açores). Imagem da Internet.


Imagem 6: Moinhos de Vento em Toledo (Espanha). Imagem da Internet.


Imagem 7: Moinhos de Vento em Mykonos (Grécia). Evidenciam-se aqui os capelos cobertos de colmo. Imagem da Internet.


Imagens 8, 9 e 10: Post Mill (Países Baixos), Tower Mill (Inglaterra) e Smock Mill (Inglaterra). Imagens da Internet.


2. Um olhar histórico à atividade moageira na Ribeira de Muge
A zona em estudo abarca o médio curso da Ribeira de Muge, ao longo de três concelhos (Chamusca, Almeirim e Salvaterra de Magos). Estabelecemos como limite a montante a confluência da Ribeira do Chouto com a Ribeira de Muge e a jusante a confluência desta última com a Ribeira da Lamarosa. Para além dos engenhos situados na ribeira, abordamos também aqueles que estão nos seus afluentes, ou que são de outras tipologias, nomeadamente de vento.

O mais antigo vestígio de moagem aqui presente vem das Ferrarias (Raposa), e é uma mó manual, atribuída ao Período Romano.

Em relação aos moinhos em si, temos vestígios (físicos, documentais ou testemunhos orais) de 22 engenhos nesta área. Do ponto de vista histórico, iremos apenas abordar o primeiro testemunho que temos de cada um deles.

1434: D. Duarte, para por fim a uma contenda entre os limites dos Termos da Vila de Muge com a Vila de Santarém estabelece que este “vai da estrada pelos moinhos da regueifeira para Coruche”. Este engenho, que chegou aos nossos dias, encontra-se hoje perto do limite entre os concelhos de Almeirim e Salvaterra de Magos.

1459: Já no Termo da Vila de Muge, é construído nesta data um moinho por Gomes Eanes (Moinho do Gomes), entre dois outros já existentes (Moinho do Porto de Lançarote, a jusante e a montante o Moinho do Gonçalo – anteriormente da Regueifeira).

1511: são neste ano mencionados três engenhos junto ao local onde se estava a edificar o Paço Real da Ribeira de Muge, que eram pertença de Vasco e Francisco Palha. Eram eles o que estava junto à cerca do paço, o Moinho do Meio, por ser o que estava no meio dos três, e o Moinho de Baixo ou Moinho Derradeiro, por ser o último no curso da ribeira. São todos doados ao rei.

1518: no Paço Real da Ribeira de Muge é criado um almoxarifado. Ao segundo almoxarife, Antão Fernandes, D. Manuel I autoriza a construção de um moinho em qualquer parte do Vale João Viegas.

1549: Nesta data, João Pires tem autorização para construir um engenho em frente ao Vale Porco, sendo mencionado nas confrontações do local que abaixo existia um outro engenho, o Moinho de Cristóvão Soares.

1709-1741: É este o período de abrangência do primeiro livro dos assentos paroquiais da Paróquia da Raposa. Para além de muitos dos moinhos já aludidos, surgem pela primeira vez o Moinho dos Gagos (1712), Moinho da Raposa (1712), Moinho do Fidalgo Fernão Teles de Meneses (1715 – na Ribeira da Calha) e o Moinho de Vale Flores (1718). Para além destes, surgem outros engenhos, designados pelos nomes ou de seus proprietários ou moleiros, que não conseguimos atribuir a nenhum dos que já sabemos existir, mas também não conseguirmos comprovar que serão outros engenhos além dos já testemunhados.

1876-1881: segundo um testemunho oral, é construído um novo Moinho dos Gagos ao mesmo tempo que a ponte de Santarém.

1900-1920: segundo testemunhos orais, será neste período que será construído o Moinho do Fidalgo, no espaço do Paço Real da Ribeira de Muge, entretanto vendido a Manuel Francisco Fidalgo. Este manda fazer este novo engenho para tirar um rendimento superior ao das duas minholas que tinha no Vale João Viegas, sendo que acreditamos que uma delas seja o moinho (ou o herdeiro) de Antão Fernandes.

1933: Nesta data é efetuado um levantamento de toda a “Herdade dos Paços dos Negros”, onde são grafados os engenhos e surgem pela primeira vez o Moinho do Ti Manuel Custódio, e uma azenha e moinho de vento junto à casa de Custódio Caniço.

1937/38: É construído um Moinho de Vento, por Manuel Custódio, para conseguir alternar com a falta de água da ribeira. Ficou conhecido simplesmente por este nome por ser o único da sua tipologia em Paço dos Negros.

Por fim, podemos mencionar o Moinho da Gaga, moinho de vento situado junto aos Foros de Benfica, mas já no Concelho de Salvaterra de Magos, assim como a Minhola de Vale Flores, situada no concelho da Chamusca. Destes não temos qualquer testemunho ou registo, contudo, temos as suas ruínas nos locais em questão.


Imagem 11: Mapa com a localização geográfica dos vários engenhos. Elaboração própria a partir de cartas militares.


3. Um olhar técnico à atividade moageira na Ribeira de Muge
3.1. Tipologias de Moinhos presentes


Imagem 12: Mapa com a localização geográfica dos vários engenhos, com as tipologias devidamente assinaladas. Elaboração própria a partir de cartas militares.

3.1.1. Moinhos de Vento
No que ao Moinho de Vento de Armação diz respeito, este teve uma curta duração. Foi construído no final da década de 30 e desmantelado em 1964. Era um moinho de armação, tipo americano.
Quanto ao Moinho de Vento da Gaga, foi um moinho de vento de torre fixa, com tração de sarilho. Com efeito, apesar do capelo já ter desaparecido, são ainda visíveis os arganéis na parede interior do engenho.

3.1.2. Moinhos de Rodízio
Como podemos reparar através da imagem, a tipologia predominante de moinhos na Ribeira de Muge são os moinhos de rodízio. Com efeito, há três razões que levam a que estes sejam os engenhos mais numerosos em Portugal, e que à nossa realidade se podem adaptar.

a) Não necessitam de um grande caudal. Tendo presente que os moinhos não se edificam nos próprios cursos de água, mas em canais desviados para esse efeito, e tendo igualmente em conta que ao longo da Ribeira de Muge, precisamente no Verão (quando há menos água) se cultiva o arroz (cultura que necessita de uma grande quantidade de água), esta teria de ser melhor repartida entre as várias necessidades, e um moinho que necessite de um caudal mais diminuto seria um fator de peso. 

b) Investimento diminuto. Com efeito, a construção de um moinho de rodízio requer, face a outros menos dinheiro investido. Por se poder localizar junto a qualquer pequeno curso de água (o que diminui o custo da localização), pode adaptar-se também o seu tamanho as necessidades, nomeadamente económicas, construindo um engenho com mais ou menos casais de mós.

c) Conhecimento técnico mais reduzido. A manutenção dos engenhos podia ser feita pelo próprio moleiro, ainda que com materiais diferentes, e ficando os vários elementos diferentes do original, mas ainda assim, funcional.

3.2. Mecanização dos engenhos tradicionais de moagem
O Decreto-Lei 35 551 de 13 de setembro de 1949 vem autorizar a adaptação de motores de combustão nos engenhos tradicionais de moagem, movidos pela força do vento e da água. Na Ribeira de Muge laborariam nesta altura cerca de dez engenhos (é difícil ter uma noção exata, uma vez que tínhamos acabado de sair de um período de racionamento em 1945, em que foram proibidos de laborar os engenhos tradicionais). Destes, cinco levaram adicionados motores de combustão. Apenas sabemos a data de dois deles: o Moinho de Vale Flores, em 1950, e o Moinho de Vento, em 1957. Para além destes, também o Moinho de Cima teve um engenho, assim como o Moinho do Fidalgo (motor esse que tinha servido para regar os campos do Sorraia). Quanto ao Moinho da Raposa, foi-lhe adaptado um motor de um barco, e tornou-se num local onde se descascava o arroz (tanto que o edifício é conhecido na Raposa como “o descasque”).


3.3. Proprietários e utilizadores de moinhos
Bertold Moog criou uma grelha teórica, onde podemos encontrar as mais variadas realidades no que à exploração de moinhos diz respeito. No que diz respeito à realidade da Ribeira de Muge, podemos encontrar duas realidades distintas:

a) Hired Miller ou Moleiro contratado: aqui o moinho é uma valência de uma herdade ou quinta, e o moleiro é um empregado do proprietário da mesma. O trabalho desenvolvido no engenho é com os cereais cultivados na propriedade ou com os dos caseiros residentes na mesma. 

b) Wage Milling ou Moagem a soldo: nestes engenhos, o moleiro pode ser o proprietário do moinho ou um empregado deste. Situam-se por norma junto ou nos aglomerados populacionais, e trabalham para as populações, com os cereais que estas cultivam nas suas hortas. Cobram uma maquia (uma parte do cereal que é para ser trabalhado). As populações encaram o moinho como o local onde podiam comprar tudo aquilo que as suas hortas não davam: a farinha e o arroz (para quem não os cultivava, logo não os mandava fazer pelo regime da maquia), assim como o farelo, que era utilizado para alimentação dos animais.


Imagem 13: Tabela onde surgem alguns dos engenhos cuja história económico-social do séc. XX temos devidamente recolhida e tratada, sendo distribuídos pelo tipo de propriedade e localidade.

Pela tabela acima, há uma coisa que salta imediatamente à vista: onde vigora o sistema de “Moleiro contratado”, os moinhos assumem o nome da herdade onde se inserem (com exceção do Moinho de Cima / Quinta do Pinhão). Onde podemos considerar que existe a chamada “Moagem a soldo”, os moinhos assumem o nome dos seus proprietários ou moleiros (o Moinho do Pinheiro também era conhecido como Moinho do Bento, por ser esse o nome do seu moleiro).

3.4. Trabalho do Moinho

Imagem 14: Trabalho do Moinho do Fidalgo, por casal de mós.

Sobre o quadro acima, elaborado pela realidade económica dos anos 60-70 do Moinho do Fidalgo, podemos constatar que num mesmo engenho trabalhavam-se vários cereais, e que as mós podiam ser tocadas por várias forças diferentes.
Para alem disto, há que lançar duas notas importantes. Em primeiro lugar, o moinho não trabalhava apenas para a produção de farinha, tendo um outro produto trabalhado: o arroz. Com efeito, aqui descascava-se arroz (colocando uma forra de cortiça no pouso, e aumentando a distancia entre as mós, por forma a não farinar o grão). Por outro lado, aqui fazia-se também milho partido, para forragens de animais.

3.5. Especificidades regionais / locais dos moinhos da Ribeira de Muge
Existem alguns elementos que caracterizam a atividade moageira que são transversais a algumas zonas do país. Outros elementos apenas os conseguimos encontrar, até à presente data, na zona da Ribeira de Muge. Assim, podemos salientar os seguintes:

a) Rodízios: Os rodízios dos moinhos, na zona em estudo, são forjados em ferro. Cremos que mais uma vez é a zona de Coimbra que atua como fronteira nesta questão, sendo que a norte desta cidade será mais comum encontrar rodízios feitos em madeira. 

b) Suspensão dos tegões: na zona da Ribeira de Muge, os tegões são suspensos sobre o casal de mós agarrados a um poste, e será esta a forma predominante no sul do país. Já a norte, predomina a suspensão do tegão em barrotes.

c) Rela: a rela é o dispositivo onde assenta o aguilhão, ou seja, a ponte da pela. A pela (que começa no aguilhão e termina na segurelha) é o veio que transmite o movimento do rodízio à andadeira. Aqui, encontramos relas feitas de cubos de cobre. Foi o único local onde encontramos relas desta forma. Nos demais sítios em Portugal que visitamos, temos notícia da rela ser uma pedra.

d) Levada: como já referimos, os moinhos encontram-se sob um canal artificial que é desviado do curso de água principal. Esses canais são, por norma, lajeados, e com algumas dezenas de metros e chama-se levadas. No caso da Ribeira de Muge, esses canais chegam a ter quilómetros, tocam vários moinhos e servem outros fins, como regar as hortas e a cultura do arroz. São chamados “vala do munho”, ou seja “vala do moinho”. Existem duas, sendo que a primeira vale tem cerca de 1,2 Kms, tocando o Moinho do Ti Manuel Custódio e o Moinho do Fidalgo. A segunda terá cerca de 5 Kms, tocando o Moinho do Pinheiro, Ponte Velha, Várzea e possivelmente terá tocado também o desaparecido Moinho da Parreira.

Comunicação apresentada no I Colóquio "Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia: Arqueologia, História e Património", que decorreu em Glória do Ribatejo, no dia 18 de julho de 2015. 

sábado, 13 de junho de 2015

Assinalam-se hoje os 500 anos do almoxarifado de Antão Fernandes

Não temos conhecimento da data exata da nomeação de Antão Fernandes como almoxarife do Paço Real da Ribeira de Muge, se é que teve uma nomeação oficial. No final de 1514 o cargo de almoxarife ainda era exercido por Diogo Rodrigues, que já fora almoxarife das obras, desde 1511. Data de 13 de junho de 1515 o documento apresentado e transcrito abaixo, em que Antão Fernandes assume receber 300$000 réis da Casa da Mina para pagamento de obras nos paços de Almeirim e da Ribeira de Muge. É neste documento que surge referido pela primeira vez como titular do almoxarifado do Paço Real da Ribeira de Muge, cargo para o qual houvera sido nomeado por Pedro Matela, Contador Mor de Santarém e Abrantes e Corregedor perpétuo da Vila de Almeirim. Talvez por ter sido nomeado por Pedro Matela, Antão Fernandes nunca teve um alvará de nomeação régia, como os restantes almoxarifes. Ou pelo menos é esta a razão mais plausível que podemos apontar para o facto de o desconhecermos.


Sejam certos os que esta carta virem como Antão Fernandes almoxarife dos Paços da Ribeira de Muge conheceu e confessou receber de Bastião de Vargas tesoureiro da Casa da Mina 300 mil réis por mandado de El-rei nosso senhor para despesa das obras de Almeirim e dos Paços da dita ribeira de Muge e por os ditos 300 mil réis ficaram carregados em receita sobre o dito Antão Fernandes, almoxarife por mandado do contador Pedro Matela, e vedor das obras do dito senhor, por Francisco Dias escrivão do almoxarifado de Santarém a 13 dias de Junho. Ano de mil quinhentos e quinze.
CC, 2, mac 58, fol.60

Antão Fernandes foi nomeado em maio de 1504 como escrivão do Almoxarifado de Almeirim, sendo designado numa carta de D. Manuel I como Moço do Monte. Enquanto exerceu o cargo no Paço Real da Ribeira de Muge, onde estava obrigado a viver em permanência, obteve autorização do rei para construir um moinho no Vale João Viegas, que acreditamos que seja um dos que chegou ao início do séc. XX. Morreu no exercício deste cargo, por volta de 1522 (é neste ano que é nomeado Luís Mota como almoxarife do Paço Real da Ribeira de Muge, por morte de Antão Fernandes).

Reprodução da Assinatura de Antão Fernandes