sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Rei Preto

É talvez a mais emblemática figura de Paço dos Negros, na qual se pode alicerçar a identidade desta comunidade. É a matriz comum às pessoas que aqui vivem, e que são descendentes dos escravos que para aqui vieram morar, miscigenados com os brancos. Foi já esta figura alvo de uma homenagem por Evangelista (2013), onde reúne em livro os factos históricos, as memórias orais e uma crítica social. Entrando no domínio da lenda e da cultura popular, há duas versões distintas da história do Rei Preto.

A primeira chega-nos pelo Conde da Atalaia, quando no final do séc. XIX dizia ao seu caseiro do paço que “este lugar não tem história daqui para trás, só daqui para a frente. Porque foi feito para abafar um escândalo muito grande”. Este escândalo estava ligado a um neto bastardo do rei, que seria filho de uma princesa sua filha e de um escravo negro que a houvera engravidado. Assim, o monarca mandou construir este paço, isolado no meio da charneca entre Almeirim e Coruche, para aqui ficar degradado o seu neto preto e o seu pai, porque se tinha de abafar o escândalo.

O Rei Preto nas comemorações dos 500 anos do Paço Real da Ribeira de Muge (2011)

 Uma outra versão diz-nos que nos escravos que para aqui vieram, veio um que era muito mau e muito ladino. Era filho do rei lá na sua terra, em África, e aqui tinha regalias especiais, devido a essa mesma filiação. Ficou de tal forma esta figura incrementada nas memórias populares, que é recorrente ser apelidado qualquer rapaz mais travesso e moreno como “rei preto”.

Tendo a lenda presente, e indo de encontro aos factos, não menciona a documentação da época nenhuma alusão a um neto bastardo do rei preto, nem tão pouco a um escravo que era filho de um rei em África. Contudo, encontramos várias alusões a negro que são tratados de forma preferencial em relação aos demais, e que muitas vezes nem têm o estatuto de escravos.

Num documento de 1528, citado e analisado por Vasconcellos (1926) e Evangelista (2011), é mencionado um escravo para além dos outros, que receberia à parte 2$580 (enquanto os demais tinham 42$650 para cerca de 30 almas). Segundo Evangelista (2011), é possível que este outro fosse Fernão Frade, que mencionamos aqui. Ainda este mesmo documento alude a uma outra distinção: atribuiu ao almoxarife 2$580 para mantimento, vestir e calçar uma preta, com a qual casou o preto Diogo Lopes.

Seria algum destes três (Fernão Frade, Diogo Lopes ou a sua mulher), o famoso Rei Preto? Não o poderemos afirmar, contudo, é bem de salientar o seu tratamento preferencial, em relação aos demais. Por fim, convém salientar que Fernão Frade, como Evangelista (2011) menciona, é o preto responsável pela capela do Paço Real da Ribeira de Muge.

Bibliografia e fontes:
EVANGELISTA, Manuel (2004). Lendas da Ribeira de Muge. S/l: Edição Junta de Freguesia de Fazendas de Almeirim e Junta de Freguesia da Raposa.
EVANGELISTA, Manuel (2011). Paço dos Negros da Ribeira de Muge: A Tacubis Romana. S/l: Edição do autor.

EVANGELISTA, Manuel (2013). Contos do Rei Preto. S/l: Edição do autor.

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sábado, 23 de agosto de 2014

Os negros e os escravos no Paço Real da Ribeira de Muge – nos 500 anos da sua conclusão

A submissão de uns povos aos outros é uma constante na história. O comércio de escravos também. Apesar da escravatura já vir de povos longínquos (os romanos já a tinham, por exemplo), ficaram essencialmente na nossa memória os escravos negros, oriundos de áfrica. Segundo Magalhães (2003), os primeiros escravos com estra proveniência chegaram ao nosso país em 1444, durante o reinado de D. Afonso V. Cerca de cem anos depois, mais precisamente em 1551, existiam em Portugal 9950 escravos, cerca de 10% da população total.

Os escravos eram destinados essencialmente aos trabalhos pesados. As escravas entravam essencialmente pelos trabalhos domésticos. Com a sua chegada massiva ao território nacional, aumenta a emigração dos naturais, uma vez que não podiam competir com o seu trabalho (não remunerado). Foi contudo com a presença escrava que se impediu um colapso demográfico nesta época.

Representação dos escravos na vida doméstica, numa iluminura do livro de Horas de D. Manuel I, produzido na primeira metade do séc. XVI. Fonte: Matriz.net.


A presença de negros nesta zona da Ribeira de Muge, e no Paço Real da Ribeira de Muge, é inquestionável. É precisamente da sua presença que advém o topónimo “Paço dos Negros” – o paço real, para apoio às caçadas e montarias, que foi habitado por escravos negros. Evangelista (2011), alude a vários registos da presença destes negros (escravos ou não) neste local, a saber:

1. Em abril de 1511, na carta que Pedro Matela escreve a D. Manuel I sobre o andamento das obras do paço nas margens da Ribeira de Muge, menciona que estas poderiam ter um maior andamento caso fosse para ali enviado “uma dúzia de escravos”, que depois seriam novamente mandados para outro lado. Assim, importa vincar, como diz o autor, que a construção do paço se iniciou sem a presença de escravos. Matela refere ainda na sua carta uma “ruinosa venda de [doze] escravos que estavam em Almeirim” (Evangelista, 2009: 75).

2. Durante o período de construção do paço (1511 – 1514), Diogo Rodrigues, almoxarife das obras e depois do paço, recebeu “de escravos, 7 peças”, ou seja, sete escravos.

3. A 30 de junho de 1516 são enviados quatro escravos da Casa da Mina para aqui.

4. Em 1529, num documento da época, sabemos que viviam 18 escravos homens, com quatro mulheres e oito filhos, perfazendo um total de 30 cativos. Para além destes, é ainda aludido no documento Fernão Frade, que não seria escravo, sendo possivelmente negro, e que recebia 542 reais.

5. Através de uma carta, em 1550, a rainha D. Catarina ordena a entrega de numerosos bens ao almoxarife do paço (à época Estevão Peixoto) para sustento das suas cabras e vacas. Entre estes contavam-se cinco moios de trigo para sustento de quatro pastores e uma escrava “que lhe há-de amassar e lavar a roupa”.

6. Em Setembro de 1552 há o registo da compra de um vestido para a escrava Maria Preta por 2$112.

A miscigenação entre negros e brancos existiu neste local da Ribeira de Muge. Ainda hoje, apesar de já não existirem negros ou mulatos, existem as marcas genéticas que eles deixaram nas gentes daqui. Contudo, não sabemos se estes passaram a ser livres com a extinção da escravatura, com o marquês de Pombal no séc. XVIII, ou se com a alforria – que segundo Magalhães (1993), era comum ser dada aos escravos em testamento pelos seus senhores. Ou seriam ambas as situações? Na segunda década do séc. XVIII, um pouco a jusante do paço, na Várzea Redonda, morre subitamente um escravo, pelo que temos a certeza que nesta época ainda existia escravatura na Ribeira de Muge.
   
Bibliografia:
EVANGELISTA, Manuel (2011). Paço dos Negros da Ribeira de Muge: A Tacubis Romana. S/l: Edição do autor.

MAGALHÃES, Joaquim Romero (1993). “A Sociedade”, in MATTOSO, José (coord.), História de Portugal, 3.º Vol. S/l: Círculo de Leitores. (pp. 469-509)


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quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Leonarda Maria, uma proprietária na Ribeira de Muge da primeira metade do séc. XVIII

Como seria a Ribeira de Muge na primeira metade do séc. XVIII? Quantas pessoas aqui viveriam e em que condições? O que faziam? O fausto da presença da corte já se tinha perdido. Contudo, a coroa continuava a ser proprietária da Coutada da Ribeira de Muge, e o almoxarifado continuava a ter sede no Paço Real da Ribeira de Muge, agora chamado “Passos dos Negros”, apesar do almoxarife já não estar obrigado a residir no paço. Ao analisar os registos paroquiais da época encontramos algumas personalidades sucessivamente referidas, o que nos faz concluir que teriam aqui alguma importância. Hoje iremos deter-nos numa delas.
Moinho da Várzea Redonda, na atualidade. Leonarda Maria foi sua proprietária na primeira metade do séc. XVIII. 

Leonarda Maria é nomeada várias vezes entre 1713 e 1728, como sendo moradora ora na Várzea Redonda ora no Moinho da Várzea Redonda. É comum aparecer nos registos paroquiais a diferença entre uma coisa e outra. A primeira menção que temos conhecimento é o batismo de sua filha, Isabel, a 19 de agosto de 1712. Foram padrinhos Josefa Maria de Seixas e Paulo Soares da Mota, moradores na Vila de Almeirim e sendo ele almoxarife do Paço Real da Ribeira de Muge.

Em 29 de outubro de 1713 Leonarda Maria fica viúva. O seu marido, José Marques, morre com todos os sacramentos e é sepultado no canto nascente do altar da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa. Deixa um testamento onde lega à sua mulher a Ponte Velha. A cinco de maio do ano seguinte é batizado outro filho de ambos, Manuel, sendo padrinhos Manuel Lopes e Maria Nunes. Sendo os batismos feitos em crianças, podemos supor que Leonarda Maria seria ainda uma mulher nova e que ficou viúva relativamente jovem.

De 22 de agosto de 1716 temos conhecimento de uma provisão, onde Leonarda Maria pede para cultivar umas bicadas de terreno junto a um moinho que possuía na Ribeira de Muge. É invocado nesta que tal coisa era prática pelos donos dos outros moinhos vizinhos. Não sabemos ao certo a que moinho se referia a dita provisão, atendendo a que Leonarda Maria possuía dois moinhos (o da Várzea Redonda e o da Ponte Velha). Para além destes, entre o “Passo dos Negros” e a Raposa (sede paroquial), existiam à época os moinhos de Paulo Soares da Mota, do Pinheiro, da Parreira e da Raposa.

Data de 31 de maio de 1718 uma escritura de emprazamento onde Leonarda Maria apresenta um pedido à coroa para renovação do aforamento do Moinho da Ponte Velha. Seria possivelmente esta situação despoletada pela morte do seu marido, José Marques, cinco anos antes? Temos de ter presente que os aforamentos se faziam em três vidas, renováveis. Seria a de José Marques a terceira? É referido que o aforamento, em três vidas, contaria como sendo Leonarda Maria a primeira. Esta faz ainda um pedido para lhe ser baixado o foro (15 alqueires de trigo e 15 alqueires de cevada), pois o moinho, com três casais de mós, encontrava-se degradado.

No ano seguinte, morre um escravo que Leonarda Maria possuía – Pedro Tinoco, de morte súbita. É sepultado no corredor da igreja paroquial. Dos anos seguintes, temos conhecimento de quatro batismos em que Leonarda Maria é madrinha, a saber:

- Mariana, filha de Diogo Vieira e Maria Nunes, moradores no Moinho da Ponte Velha, a 14 de janeiro de 1720.
- Leonarda, filha de Pedro Fernandes e Josefa Maria, moradores no Moinho da Várzea Redonda, a 12 de janeiro de 1721. Foi madrinha com João Luís.
- Antónia, filha de Pedro Fernandes e de Josefa Maria, moradores na Várzea Redonda, a 15 de novembro de 1722. Foi madrinha com João Vaz.
- Ana, filha de Domingos Martins e Maria da Silva, moradores no Moinho da Várzea Redonda, a 26 de julho de 1723. Foi madrinha com o seu filho, José Marques.

A 24 de julho de 1727, morre Leonarda Maria, na Várzea Redonda. É sepultada no n.º 7 da Igreja Paroquial de Santo António da Raposa. No ano seguinte casarão dois dos seus filhos. Isabel Maria (a ser a mesma Isabel que é batizada em 1712, teria cerca de 17 anos), a 1 de julho, com António Costa, de Alpiarça, assim como as testemunhas do casamento. A 24 de agosto casa José Marques, com Tomásia Dias (de Torres Novas). São testemunhas deste casamento Diogo Vieira (morador na Raposa) e Luís Dias (morador na Várzea Redonda). Estes dois estabeleceram relações de algum modo com a família de Leonarda Maria, tendo em conta que viveram nas suas propriedades. Desconhecemos contudo os vínculos que lhe tinham.

Por fim, podemos inquirir-nos: como se pode inserir Leonarda Maria na sociedade do séc. XVIII? Temos evidências bastantes para concluir que não era uma simples mulher camponesa. Contudo, cremos ser excessivo poder considera-la uma pequena fidalga ou até burguesa (este seria o caso dos Soares da Mota, que viviam na Vila de Almeirim, e não no meio da charneca).

Cremos ser possível que Leonarda Maria seria ao século XVIII aquilo que no século XX se chamou “uma lavradora”. O seu marido fez testamento, o que não era muito comum à época, segundo os registos paroquiais. Trazia aforadas duas propriedades, nas quais viviam várias famílias. Com efeito, entre 1717 e 1727 há nos registos paroquiais três agregados diferentes no Moinho da Ponte Velha e nove no Moinho da Várzea Redonda. Para além disto, temos ainda de ter presente que Leonarda Maria é chamada a ser madrinha de quatro crianças de pessoas que viviam nas suas propriedades.

Por outro lado, e tendo presente que Leonarda Maria terá ficado viúva relativamente nova (tinha filhos que ainda nem sequer eram batizados), podemos perguntar-nos a razão pela qual não terá voltado a casar. Com efeito, é comum encontrarmos registos de viúvos que voltam a casar. Contudo, Leonarda Maria não o faz. Será que ao casar esta perderia direito às propriedades que tinha, passado estas para alçada do seu marido?

Fontes documentais e bibliográficas:
(1706-1741). Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados – Raposa (Sto. António).
(1716). “Leonarda Maria, Provisão”, Chancelaria de D. João V, livro 46, folhas 318v a 319v.
(1717). “Leonarda Maria, Carta de Emprazamento”, Chancelaria de D. João V, livro ??, folhas 347 e 347v.

EVANGELISTA, Manuel (2011). Paço dos Negros da Ribeira de Muge – A Tacubis Romana. S/l: Ed. de autor. 

domingo, 27 de julho de 2014

O Pórtico do Paço Real da Ribeira de Muge

O Paço Real da Ribeira de Muge, grosso modo, tinha um pátio em torno do qual se formava o complexo residencial, de serviço e a capela. Tinha-se acesso a esse mesmo pátio através de um pórtico, sobre o qual nos deteremos hoje.

Pórtico do paço em 2009.

O pórtico é não mais que um muro rasgado a meio por um vão, em arco rebaixado, emoldurado por uma barra em cantaria, que na ponta do arco se estende, e que hoje está disfarçada pelo facto de todo o muro ter sido caído da mesma cor. Contudo, em tempos, seria bem possível que a pedra estivesse à sua cor natural, criando assim uma diferenciação com o resto do muro. Seria este vão preenchido por um portão, visto que ainda são visíveis os arranques das dobradiças, onde este encaixaria, assim como um buraco, que penetra cerca de um metro na parede, e que provavelmente serviria para encaixar uma tranca.
Pormenor do pórtico – heráldica de D. Manuel I

Do paço que chegou aos nossos dias este é o elemento arquitetónico mais rico, pela própria representativamente artística da época. Com efeito, é encimado o vão pela heráldica do monarca que fundou o espaço: o escudo real e duas esferas armilares. O escudo encontra-se ao centro, emoldurado e coroado. A coroa está bastante danificada, sendo contudo percetível que se trata de uma coroa aberta. O escudo termina em bico, tendo a faixa exterior sete castelos. São visíveis igualmente os besantes das cinco quinas. As esferas armilares são consideravelmente mais pequenas, também emolduradas. Foram quebrados os aros na frente, sendo visível apenas a esfera interior, rodeada por um pequeno aro.

A parte superior é constituída por uma cornija, sob a qual assentaria uma contínua e sistemática fila de merlões decorativos. Destes, sobram apenas seis, sendo visíveis contudo o arranque de alguns deles.

Reconstituição do pórtico.

Aguarela de Maria Nélia Castelo (pormenor).


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domingo, 20 de julho de 2014

Depois da extinção do Convento da Serra

Como referimos aqui, em 1834 o Convento da Serra é extinto. Segundo Andrade (2012), após a extinção das ordens religiosas, os grandes lavradores de Almeirim organizam-se de modo a comprar os bens destas (várias casas conventuais e monásticas de Santarém tinham bens deste lado do Tejo), por forma a poder alargar o seu património. O Convento da Serra acaba por ir parar às mãos dos Condes Sobral, cuja principal propriedade no concelho é ainda hoje o Casal Branco (contudo, também o Casal Monteiro e a Herdade dos Gagos foram posse desta casa).

Na sua obra sobre o concelho de Almeirim entre 1867 e 1879, Bárbara (2013), no estudo populacional, menciona a existência da “Quinta de Nossa Senhora da Serra” em 1871, com 15 fogos e 64 habitantes. Seriam estes habitantes os descentes dos caseiros ou da pequena comunidade a que aludimos aqui? Ou seriam já um incremento do Conde Sobral? A ser assim, verificamos que a esta época, o Convento da Serra já tinha uma dimensão superior ao próprio Casal Branco, que contava com apenas seis fogos e 24 habitantes.

Todavia, o que sabemos, é que este espaço pertencia eclesiasticamente à Paróquia de Marvila, de Santarém. Tal situação não é inédita, verificando-se o mesmo para vários casais do concelho, nomeadamente o próprio Casal Branco, que pertencia à paróquia escalabitana de S. Nicolau.

Bibliografia:
BÁRBARA, Luís (2013). Almeirim, 1867 a 1879 – vida e curiosidades. S/l: Ed. Associação de Defesa do Património Histórico e Cultural do Concelho de Almeirim.

ANDRADE, José J. Lima Monteiro (2012). O Espírito de Almeirim: um desafio. S/l: Ed. Santa Casa da Misericórdia de Almeirim. 


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sábado, 12 de julho de 2014

A Igreja do Convento da Serra – nos 500 anos da sua fundação

Fotografia aérea da área onde estaria edificado o Convento da Serra.

Como referimos aquinão chegou aos nossos dias vestígio arquitetónico algum do Convento da Serra para além do pórtico de entrada. Da sua igreja, contudo, tivemos conhecimento de alguns relatos de pessoas que ainda conheceram parte da sua estrutura. Sabemos assim que ficaria ao fundo do pátio a que se tinha acesso através do pórtico. Vemos uma zona destacada na fotografia aérea acima, onde não cresce a erva. É normal que tal aconteça num sítio onde houve uma construção, visto que a cal presente nesta anula a capacidade produtiva do solo. Assim, cremos poder afirmar que seria ali que se situaria a igreja do convento. Não sabemos ao certo como era a sua planta. Temos contudo conhecimento que teria um transepto e uma cripta.


Painéis do retábulo do Convento da Serra, a formar um tríptico. Reprodução de um postal da coleção “Almeirim de Boa Memória”.

O retábulo da igreja do Convento da Serra, que mencionamos aqui, que houvera sido mandado fazer por D. Manuel I, ainda existia quando Frei Luís de Sousa escreve a história de S. Domingos, na primeira metade do séc. XVII. Por retábulo podemos considerar um “painel de madeira ou pedra que domina o altar de uma igreja e que é esculpido ou pintado e ricamente decorado”, segundo o Dicionário Informal da Língua Portuguesa. O mesmo retábulo volta a ser mencionado em 1740 por Fr. Inácio da Piedade. Aos nossos dias chegaram apenas três painéis deste retábulo, que estão presentemente no Museu Nacional de Arte Antiga.

Estes três painéis, dos quais dois fazem parte da exposição permanente do referido museu, ao serem agrupados, ficaram conhecidos como o “tríptico dos infantes”, apesar de na verdade estas pinturas não constituírem um tríptico, mas sim serem painéis de um retábulo, cujos restantes desapareceram. Os dois painéis com infantes têm 157cms/67.5cms, sendo pinturas a óleo sobre madeira de carvalho. O Painel da Virgem, é igualmente uma pintura a óleo sobre madeira de carvalho, com a mesma altura de 157 cm, sendo mais largo, com 88cm.

Duas possibilidades de reconstituição do retábulo da Igreja do Convento da Serra. Na primeira, e se não houvesse uma grande moldura entre cada um dos painéis, teria cerca de 7 metros de largura. Já o segundo, inspirado no retábulo do Mosteiro dos Jerónimos, da mesma época, temos os painéis em dois níveis, sendo que o painel central na Virgem, fica plano superior, tendo no plano inferior a cruz e o sacrário, tendo cerca de cinco metros de largura. Em ambos os casos, os painéis são distribuídos com base na idade dos infantes, estando os monarcas, um de cada lado do painel central da Virgem.

Não se sabe ao certo quem foi o autor do retábulo, estando contudo inserido na designada “escola luso-flamenga”, que se caracterizava por ter sumptuosos e exuberantes fundos paisagísticos e motivos naturalistas (Serrão, 2001). Todavia, aventam-se as seguintes hipóteses para os seus autores:

- Frei Carlos, que nas tábuas que lhe são atribuídas, de uma forma transversal, pode considerar-se que as suas principais figuras representadas assumem uma “individualidade psicológica patenteada pelos rostos e a serenidade imagética” (Pereira, 1993: 439)

- Francisco Henriques, cuja produção do seu atelier pode ser definida como “revelando um desenho largo e a instalação de figuras em planos unitários dotados de amplidão espacial.” (idem).

- Mestre da Lourinhã, “que introduziu novas formas de iconografia e modelos plásticos na pintura nacional, até então arcaizante e tradicionalista.” (Serrão, 2001: 401).


Os dois painéis dos infantes, expostos no Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

O painel da esquerda retrata o infante D. João, futuro rei D. João III. É o primeiro retrato conhecido do monarca, que à altura teria possivelmente 13 anos. Apresenta-se de joelhos, com os panejamentos debruados a ouro e a surgirem movimento, assim como os de S. João Baptista, que era o seu Santo Padroeiro. De salientar que, por esta época, tinha sido construída a igreja de S. João Baptista em Almeirim.

O painel da direita retrata possivelmente o Infante D. Luís com cerca de nove anos. A figura do infante é acompanhada por um frade dominicano (ordem a que estava consagrado o Convento da Serra), que seria possivelmente o seu patrono.

O painel central retrata a Virgem com o menino ao colo, sentada em majestade. É ladeada por duas figuras angelicais. Segundo Frei Luís de Sousa, a família real, aqui apresentada, orava à virgem, pelo que podemos depreender que este seria o painel principal, ou central, em torno do qual apareceriam todos os outros.


Quadro onde é apresentado o Infante D. Henrique, como pertencente ao Convento da Serra. Reprodução da Revista “Ilustração Portuguesa”.

Por outro lado, encontramos referências a uma outra obra de arte deste Convento. Na edição de 7 de abril de 1923, na revista “Ilustração Portuguesa”, surge o quadro representado acima, que é apontado como aquele que o cardeal-rei D. Henrique mandou fazer para colocar no Altar de Jesus do Convento da Serra, no cruzeiro. O quadro pertencia à época ao Marquês da Foz, que o houvera comprado a um antiquário, que mencionou a sua proveniência da Quinta da Alorna. A partir daqui o autor do referido cria uma série de deduções, de modo a criar a hipótese de se tratar a da referida pintura, aspetos com os quais corrobora Vasconcellos (1924).

Contudo, a nós não nos parece tal possível, visto que Frei Luís de Sousa menciona que o Cardeal D. Henrique se fez representar “de joelhos e bem ao natural”. Pela observação da obra, percebemos que o cardeal não está de joelhos. Por outro lado, se o “ao natural” quiser dizer que é uma representação no tamanho “natural” de D. Henrique, vemos a possibilidade de se tratar da mesma pintura ainda mais inverosímil, visto que esta tem 1/1 metro.


Imagem do Cristo Cruxificado no altar-mor da Igreja de S. João Baptista de Almeirim

Está na Igreja de Almeirim um outro elemento pertencente ao extinto Convento da Serra. A imagem de Cristo Cruxificado desta igreja, elemento fundamental em todos os templos católicos romanos, esteve originalmente no convento dominicano, sendo conhecido como “Senhor da Serra”. É uma imagem policromada, com as chagas em relevo e várias feridas no corpo, nomeadamente nos joelhos, face, ombros e anca. Os músculos do corpo de Cristo estão altamente desenvolvidos. Está coroado com uma coroa de espinhos, em lhe verte igualmente algum sangue para a cara.


Pia decorativa que pertenceu ao Convento da Serra, atualmente no Museu Municipal de Almeirim.
  
Por fim, estão presentes ainda no Museu Municipal de Almeirim dois elementos escultóricos provenientes do Convento da Serra, e com uma forte probabilidade de pertencerem à igreja. Uma pia, que não seria a pia batismal, visto que essas por regra são redondas. Seria uma pia situada à entrada da igreja? (como é comum em algumas igrejas). O seu último friso não a contorna totalmente, estando ausente de uma das faces, pelo que é possível que estivesse agarrada a uma parede por esse lado.



Duas mísulas em cantaria, provenientes do Convento da Serra de Almeirim, atualmente expostas no Museu Municipal.

Encontramos ainda aqui duas mísulas, recolhidas em 1999 pelo arquiteto Elias Rodrigues, aquando da organização de uma exposição à época na biblioteca municipal, designada ”Dos Paços Reais à Cidade”. São duas peças de cantaria, em que se notam duas partes distintas: uma em que a pedra não está trabalhada, que estaria possivelmente entalhada na parede, e uma outra trabalhada. O vértice inferior (nas fotos as peças estão ao contrário) é decorado com motivos vegetalistas. A mísula em si assume uma forma piramidal, com os lados de diferentes tamanhos. Quando às funções, poderão ter sido o suporte de uma abóbada, e sendo assim as pedras de abóbadas diferentes, visto não serem iguais. Uma vez que a parte que se encontra virada para o chão é totalmente lisa, podem também estas ter sido bases de imagens de santos, espalhadas pela igreja.

Bibliografia e outras fontes:
(s/d). “O Príncipe D. João e São João Baptista” – Matriz.Net. (ficha de inventário).
(s/d). “O Príncipe D. Luís (?) e um santo Dominicano” – Matriz.Net. (ficha de inventário).
FARINHA, Santos (1923). “Retrato do Cardeal-Rei D. Henrique”, Ilustração Portuguesa, 2.ª série, n.º 894, de 7-4-1923.
PEREIRA, Paulo (1993). “A conjuntura artística e as mudanças de gosto” in: MATTOSO, José, História de Portugal, 3.º vol. S/l: Círculo de Leitores. (pp. 422-467)
RODRIGUES, Elias (2006). “Convento da Serra de Almeirim: Lugar Sagrado e Patrimonial”, O Almeirinense (ed. de 1 de junho de 2006).
SERRÃO, Joaquim Veríssimo (2001). História de Portugal, 3.º vol, 3.ª edição. S/l: Edições Verbo.
SOUSA, Frei Luís (1866). História de S. Domingos, Livro III, 3.ª edição. S/l: Tipografia Panorama.

VASCONCELLOS, Frazão de (1924). “A Sepultura de Fernão Soares, pagem do livro del-rei Dom João III existente no Convento de Almeirim”, separata da publicação Arqueologia e História. Lisboa: Tipografia do Comércio.

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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Sobre as lápides existentes no Convento da Serra – nos 500 anos da sua fundação

Quando falamos (aqui) sobre as personalidades que foram sepultadas no Convento da Serra, falamos de todos aqueles que aparecem mencionados em algum lugar. No entanto, em 1924 Frazão de Vasconcellos, numa publicação sobre uma visita sua a este local, menciona a existência de três lápides sepulcrais. Hoje estão no Museu Municipal de Almeirim precisamente três lápides provenientes desta casa conventual.


Lápide de Fernão Soares, no Museu Municipal de Almeirim.

Uma delas pertence a Fernão Soares, é brasonada, e o epitáfio reza “SEPVLTURA DE FERNÃO SOA/RES FIDALGO DA CASA DE/L REI DO JOAO TERCEIRO DESTE/ NOME E SEU PAJE DO LIV/RO FALECEO AOS XXII DIA/S DO MÊS DE JVNHO NA E/RA DE 1544 ANOS”. O brasão é esquartelado (dividido em quatro partes), com as armas dos Calatayud e Figeirôa. Tem 10/4,5 palmos.

Fernão Soares era filho de D. João de Catalayud e D. Aldonça Soares de Figueirôa, aragoneses, que vieram para Portugal com a Rainha D. Maria (segunda mulher de D. Manuel I), para a servir. Esteve dois anos em serviço em Tânger, onde recebeu a Comenda de Santa Maria de Almendra da Ordem de Cristo, em 1537. Braamcamp Freire menciona que morreu solteiro e sem filhos, o que Frazão de Vasconcellos discorda, dizendo que além de ter sido casado com uma D. Maria (filha de D. Maria de Meneses e Francisco de Anhaya), teve uma filha bastarda, que se tornou freira.


Os três fragmentos da lápide de Diogo Vaz Ronquilho, no Museu Municipal de Almeirim.

Uma outra tem inscrito o nome de “Diogo Vaz Ronquilho”, sem data ou outro elemento. Não conseguiu o autor apurar quem seria este Diogo Ronquilho, apesar de referir um epitáfio na nave central da Igreja de Santa Iria, em Santarém, onde rezava “Sep.ª de Diogo Vaz Ronquilho e de seu herdeyros”, que também não continha data alguma. Encontra-se partida em três partes, não se sabendo se se separou ao ser removida do local onde se encontrava originalmente, ou se isso aconteceu posteriormente. Frazão de Vasconcellos não refere tal coisa no seu trabalho. Contudo, sabemos que quando chegaram ao museu, se encontrava já neste estado.



Lápide de Beatriz Fernandes, à entrada do Museu Municipal de Almeirim.

Por fim, é ainda aludida por Frazão de Vasconcellos uma terceira lápide, que tinha apenas inscrita uma data – 1544. Todavia, não nos pode deixar de parecer curioso que está hoje no museu uma lápide de 1544, que pertence a Beatriz Fernandes. Será a mesma? Se sim, porque razão disse o autor que esta não tinha outro elemento além da data?

No final da sua publicação, Frazão de Vasconcellos menciona que aconselhou, na Associação de Arqueólogos, a que as três lápides fossem recolhidas ao museu distrital, tendo o Visconde de Santarém iniciado as diligências nesse sentido. Após vários percalços, as lápides de Diogo Vaz Ronquilho e Fernão Soares vieram parar ao museu, manifestando nós a nossa dúvida se a terceira não será a de Beatriz Fernandes. É possível vê-las hoje neste local.

                                                     
Fonte:

VASCONCELLOS, Frazão de (1924). “A Sepultura de Fernão Soares, pagem do livro del-rei Dom João III existente no Convento de Almeirim”, separata da publicação Arqueologia e História. Lisboa: Tipografia do Comércio.