Sendo
o pão um dos elementos básicos da alimentação humana, os moinhos, como
principal meio de produção de farinha, eram uma importante fonte económica.
Assim, não será estranha a sua utilização como objeto de esmolas ao Convento da
Serra, atendendo à importância da religião no séc. XVI.
Temos
notícia disso ter acontecido a 7 de maio de 1568, quando D. Sebastião faz
esmola aos frades do Convento da Serra um moinho que ficava na Ribeira de Muge
num local que se designava por “Pontão”. O moinho houvera sido comprado pelo
rei a Aires de Sousa Coutinho e sua mulher, D. Filipa da Cunha. Os frades
ficavam livres de alugar e reger o moinho à sua vontade, e de lhe tirarem os
rendimentos que achassem conveniente. Este alvará é confirmado no reinado de
Filipe II, a 15 de fevereiro de 1597. Encontramos registo de dois arrendamentos
que cremos ser pertinentes, e que passamos a descrever:
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A 13 de fevereiro de 1591 perante o tabelião de Santarém compareceu o Padre
Frei Sebastião de Pavia, do Convento da Serra, e Domingos Fernandes e Pedro
Dias, moleiros, residentes na Ribeira de Pernes. O Convento da Serra alugava a
estes um moinho que possuía na Ribeira de Muge, com dois casais de mós alveiras
(mó de calcário para farinha de trigo) e dois segundeiros (mó de arenito ou
granito, para as restantes farinhas e descasque de arroz), juntamente com as
casas e arneiros, pelo período de três anos, a iniciar no dia de S. João
Baptista seguinte (24 de junho). O moinho era entregue “despejados livres e
desembargados moentes e correntes”, e tinha de ser entregue aos frades nas
mesmas condições. Eram igualmente obrigados a manter o açude, sendo até previsto
que qualquer quebra neste inferior a dois palmos seria responsabilidade dos
moleiros, superior a isso do Convento. O pagamento da renda consistia em 12
moios de pão meado, metade de trigo e cevada, outra metade de mistura. Seria
pago um moio por mês, com 30 alqueires de trigo e cevada outros 30 de mistura.
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Em agosto de 1593, compareceram na casa do tabelião de Muge os Padres Priores
Frei António de Sequeira e Frei Diogo Correia e o Moleiro Domingos Fernandes.
Os padres, em representação do Convento da Serra, arrendam ao moleiro um moinho
que tinham na Ribeira de Muge, com quatro pedras, pelo período de um ano, a
começar naquele mesmo dia. O pagamento do arrendamento consistia em 12 moios de
pão meado, metade de trigo e metade de segunda, sendo mensalmente pago um moio.
Foi apresentado como fiador do arrendamento Simão Dias, morador na Vila de
Muge. No final do período de arrendamento era o moleiro obrigado o moleiro a
entregar o moinho “sempre novo moente e corrente e com a levada cima”.
Em
primeiro lugar, torna-se pertinente ver que esta casa conventual, ao contrário
do que era comum na época, não aforou os moinhos pelo período de três vidas ou
em fatiota perpétuo, mas antes arrendou por um curto período. Em segundo lugar,
podemos perguntar-nos se seria o mesmo Domingos Fernandes a arrendar os dois
moinhos. Em terceiro lugar, podemos interrogar-nos se os moinhos dos dois
arrendamentos são o mesmo, ou são dois diferentes, por um lado, e se por outro,
é o mesmo moinho que D. Sebastião lhes houvera feito esmola anos antes.
Apesar
de não podermos dar respostas seguras às perguntas que acabamos de formular, cremos
que é possível que se trate do mesmo arrendatário, apesar de serem moinhos
diferentes. Se repararmos bem, o primeiro arrendamento é feito em Santarém, e
temos de ter em conta que os moleiros são de Pernes (e também que os frades
tinham dois moinhos - os Moinhos da Sancha - nesta zona, sendo possível que até
já lá trabalhassem), assim como o arrendamento terminaria a 24 de junho 1594.
Assim, dentro da ótica de ser o mesmo Domingos Fernandes em causa, cremos ser
possível construir três cenários hipotéticos diferentes:
1.
É possível que o mesmo moleiro decida arrendar um segundo moinho, especialmente
se este se encontrasse perto do primeiro.
2.
Poderá ter decidido terminar a sua “sociedade” (chamemos-lhe assim) com Pedro
Vaz, e alugar um engenho por sua própria conta, deixando este naquele onde
tinham começado por trabalhar os dois.
3.
Pedro Vaz pode ter abandonado a “sociedade” ou até morrido, e o segundo
arrendamento ser apenas o reformular do arrendamento que estava a decorrer, uma
vez que ambos iriam terminar em 1594.
Independentemente
disto, o segundo arrendamento no tabelião de Muge poderá explicar-se pela maior
proximidade geográfica dos moinhos a este lugar, em detrimento de Santarém. Com
efeito, é mencionado que os moinhos ficavam na Ribeira de Muge. Tendo em conta
que o limite entre os concelhos (ou termos) de Santarém e Muge foi assinalado
no reinado de D. Duarte, em 1434 no “Moinho da Regueifeira”, e que ainda hoje
existe um moinho no local onde os concelhos de Almeirim e Salvaterra de Magos
fazem extrema, assim como de a jusante terem existido dois moinhos, já dentro
do então Município de Muge. Deste modo, cremos que o moinho dado por D.
Sebastião ao Convento da Serra seria um destes dois. Um deles, construído em
1459 por Gomes Eanes, ficando conhecido como “Moinho do Gomes”, tinha já a jusante
o “Moinho de Lançarote”.
Plantas das Terras de Almeirim
Carta Geografica das Montarias da Villa de Santarem
Do
séc. XVIII chegaram-nos dois importantes cartogramas, em que aparece
representado não só o próprio Convento da Serra, como também os moinhos na
ribeira, sendo três a jusante da Raposa. A “Planta das Terras de Almeirim”, sem
data certa, denomina esses três engenhos, consecutivamente, como “Moinho do
Policarpo”, “Moinho dos Vecos” e “Moinho dos Frades”. Já a “Carta Geográfica
das Montarias da Vila de Santarém”, de 1755, denomina-os como “Moinho do Clérigo”,
“Moinho dos Frades” e “Moinho dos Frades”.
Na
primeira carta, depois do “moinho dos frades”, surgem também duas referências
bastante importantes. A primeira, “Caniçais”, que nos permite balizar a
localização no curso da ribeira destes engenhos, visto que ainda hoje existe
este casal. A segunda é a referência ao Pontão, o que nos leva a poder concluir,
sem grande margem para dúvidas, que o moinho de que D. Sebastião fez esmola em
1568 foi precisamente o terceiro, que se encontra mencionado na carta como
“Moinho dos Frades”. Na segunda carta, temos dois engenhos com esta designação,
o que nos leva a acreditar que serão estes dois moinhos propriedade do Convento
da Serra, por terem o mesmo nome. Contudo, o terceiro engenho tem uma
designação também religiosa, o que nos leva a poder questionar se não estaria
também ligado a esta casa conventual. Não o sabemos, no entanto, sabemos que
será vendido em 1830 pelas freiras do Convento das Donas, de Santarém, também
Dominicanas. Terão elas chegado à sua posse com trocas ou cedências de bens
entre casas da própria ordem?
Já
no séc. XIX, encontramos uma referência, em Custódio (2008), que em 1806 os
frades hipotecam dois moinhos que possuíam na Ribeira de Muge, que houveram
sido doados por D. Sebastião. Todavia, no dia 1 de julho de 1836 vai à praça
por 1000$000 uma propriedade deste convento que “consta de um moinho chamado
dos Frades, situado na Ribeira de Muge, com três pedras”. Face a este cenário,
podemos construir três tipos diferentes de cenários:
1.
O Convento da Serra tinha três moinhos na Ribeira de Muge (os dois hipotecados
em 1806 e um terceiro, que foi à praça em 1836).
2.
A hipoteca foi paga, logo os frades continuaram donos dos moinhos,
justificando-se assim a sua posse aquando da extinção das ordens religiosas.
3.
É comum referir-se as moegas como “moinhos”, e assim seria apenas um moinho
(com duas moegas) que foi hipotecado em 1806, tendo ainda os Frades do Convento
da Serra ficado com o outro, que vai à praça em 1836.
Ainda
sobre esta “ida à praça” é interessante notar que o moinho em questão tinha
apenas três casais de mós. Assim poderemos questionar se o moinho dos
arrendamentos a Domingos Fernandes não seria o mesmo moinho que houvera sido
feito em esmola por D. Sebastião (visto que em ambos os arrendamentos são
referidas quatro pedras), localizado no Pontão, uma vez que, pela descrição das
confrontações feita no documento, parece-nos que se enquadraria mais no segundo
do que no terceiro (do Pontão).
Local onde ficava o Moinho do Meio, em abril de 2014.
Com
a extinção das ordens monásticas, em 1834, os moinhos acabam por ir parar às
mãos de privados, sendo que hoje já nenhum dos dois existe, apesar de ainda subsistir
memória de um deles, que desapareceu há não muitos anos. O primeiro dos
engenhos, que pertencera ao Convento das Donas, ainda hoje existe e é conhecido
como “Moinho de Cima”. O segundo, o “Moinho dos Vecos” e depois “dos Frades”,
desaparecido recentemente e que acreditamos ser aquele que foi à praça em 1836,
ficou conhecido como o “Moinho do Meio”. Se existe um moinho de Cima e do Meio,
terá de haver também um “Moinho de Baixo”, que seria o do pontão, e do qual já
ninguém se lembra.
Bibliografia e outras
fontes
(1434). Chancelaria de D. Duarte I,
livro 1, folha 924.
(1460). Leitura Nova, livro 5, maço
1001, folha 198.
(1531). Conventos Diversos, livro 32.
(1568). Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, livro 21, fol. 90v.
(1591). Conventos Diversos, volume 60, maço 2, doc. 51.
(1593). Conventos Diversos, volume 60, maço 2, doc. 50.
(1775). Carta Geografica
das Montarias da Villa de Santarem.
(1836). “Convento de Nossa Senhora da Serra,
da Ordem dos Pregadores, em Almeirim, Comarca de Santarém”, Arrematação perante o Governador Civil do Districto.
(pp. 637-638).
(s/d). Plantas da Terra
de Almeirim, coleção de plantas, Ministério do Reino, doc. 85.
CUSTÓDIO, Jorge (2008). Almeirim
– Cronologia. S/l: Edições Cosmos.
GIL, M.ª Olímpia (1965). “Engenhos de Moagem no
séc. XVI (Técnicas e Estruturas)”, Do
Tempo e da História.
TOMÉ, Samuel (2012). O Património Molinológico como fator identitário e vetor do
desenvolvimento económico: o caso da Ribeira de Muge. Dissertação de
Mestrado em Gestão e Programação do Património Cultural apresentada à Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra.
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